Gota d'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes (Interpretação Mirian Lopes)
Uma leitura interessante...nesse friozinho
JOANA
Tudo está na natureza
encadeado e em movimento –
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento,
ódio, dor, cebola, coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa.
Misture cada elemento –
uma pitada de dor,
uma colher de fermento,
uma gota de terror.
O suco dos sentimentos,
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,
lágrima, pus e suor.
Mas, inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangre o coentro,
chore e envenene a gordura:
Você terá um unguento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara no meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura.
JOANA
(Vestindo os filhos)
Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como que eles reagem à ressaca.
(Tempo)
Meus filhos, vocês vão lá na solenidade,
digam à moça que a mamãe está contente
tanto assim que lhe preparou este presente
pra que ela prove, como prova de amizade.
Beijem seu pai, lhe desejem felicidade
co’a moça e voltem correndo, que eu e vocês
também vamos comemorar, sós, só nós três,
vamos mastigar um naco de eternidade.
BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira Ed., 1982, p.161.
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